Médicos e dentistas entram em conflito pelo direito de aplicar botox

Publicado em: 28/11/2017

                                                      Foto: Allan Sieber/Folhapress

 

Após uma sequência de batalhas judiciais de médicos contra biomédicos e farmacêuticos, chegou a vez de uma briga com dentistas. A classe médica agora quer derrubar uma resolução do Conselho Federal de Odontologia (CFO).

A resolução n° 176 do CFO foi aprovada em setembro de 2016 e determina que dentistas podem fazer uso da toxina botulínica, o botox, e de substâncias de preenchedores faciais para fins estéticos.

Como resposta, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) entrou na Justiça para impedir que a classe possa realizar os procedimentos.

Um inquérito foi aberto e uma audiência está marcada para 11 de dezembro na 5° Vara Federal, no Rio Grande do Norte, para tentar resolver a questão.

Segundo Silvio Guidi, especialista em direito da saúde, não existe relação de hierarquia entre os conselhos federais de cada classe.

“Não raramente conselhos profissionais editam normas conflitantes”, diz. “O problema –ou a solução, no caso– é que a gente tem a lei do ato médico, que é superior hierarquicamente a qualquer resolução.”

Para ele, a lei do ato médico é clara: “Concordemos ou não, ela parece deixar de forma restrita a utilização de cirurgias estéticas a médicos.”

Segundo os médicos, procedimentos estéticos que envolvem aplicação do botox e de preenchedores faciais, como o ácido hialurônico (usado para combater o envelhecimento da pele), feitos de forma leviana podem gerar riscos de saúde.

Pela resolução do CFO, os dentistas foram autorizados a fazer correções de linhas de expressão com botox, como preenchimento de bigode chinês, de marionetes e olheiras, além de rugas. O ácido hialurônico pode ser usado para rinomodelação, que modifica o nariz sem cirurgia.

“Muitos pacientes procuram o botox por conta de problemas com bruxismo e acabam fazendo procedimentos estéticos também”, diz a dentista Bruna Benassi. “Os cirurgiões ganham muito com cirurgias, mas às vezes o paciente não precisa.”

Jandins Roberto, 33, que faz papel de galã em grandes eventos, faz aplicação de botox e preenchimento com dentistas desde 2015. “As linhas de expressão me incomodavam e meu rosto é meu cartão de visita.” A cada seis meses ele renova o botox.

Apesar da possibilidade de serem feitos em consultório, dermatologistas e cirurgiões plásticos afirmam que têm recebido pacientes com complicações, como alergias e até isquemias (obstrução de vasos sanguíneos), que podem levar à necrose da região.

NECROSE

A funcionária de banco Andrea (nome fictício), 32, foi uma dessas pacientes. Após um procedimento de rinomodelação com uma dentista, seu nariz necrosou. “Quando saí do consultório já comecei a passar mal, sentia muito cansaço, respirava mal e tive dores de cabeça”, conta.

No dia seguinte ao procedimento, Andrea diz que seu nariz ficou roxo e, no terceiro dia, preto. “Procurei uma médica de confiança e uma equipe conseguiu reverter”, diz.

Sérgio Palma, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), que também se posicionou contra a resolução do CFO, diz que todo procedimento estético tem seu risco.

“Um médico vai poder avaliar melhor o paciente, as indicações e contraindicações do procedimento, e vai ter total domínio da situação caso aconteçam complicações.”

CARA A CARA

Levy Nunes, da CFO, argumenta que os dentistas são tão capacitados para fazer os procedimentos quanto os médicos. “O dentista estuda cinco anos de cabeça e de face. Quem é a pessoa mais preparada para lidar com face?”

Segundo Nunes, nos EUA procedimentos feitos por dentistas são liberados. Já em outros países o controle é maior.

Para o médico Luciano Chaves, presidente da SBCP, os dentistas não têm habilitação para atuar na área de estética. “Isso foge completamente da formação profissional que eles têm”, afirma. “O objetivo dos dentistas é financeiro, não existe nenhuma preocupação com a saúde do paciente”, diz.

A Associação Médica Brasileira (AMB) também se posicionou contra a resolução do CFO e espera conseguir sua suspensão judicial. Para Fernando Antônio Gomes de Andrade, cirurgião plástico e diretor da AMB, o mais importante é garantir o bem-estar dos pacientes. “Estamos em contínuo contato para salvaguardar o direito do paciente de ser bem informado e tratado de forma adequada”, diz.

Levy Nunes afirma que existe uma reserva de mercado entre os profissionais da saúde, mas que o procedimento feito pelos dentistas é exatamente o mesmo feito pelos médicos. “Os cirurgiões estão acionando judicialmente todo mundo, será que só eles sabem aplicar botox?”, diz.

Para Bruna Benassi, existe espaço para ambas as classes, apesar dos dentistas terem mais habilidade. “Nós conseguimos fazer preenchimento bem melhor, porque podemos anestesiar por dentro da boca, então o paciente não sente dor e a gente consegue colocar o ácido hialurônico, por exemplo, mais profundamente na pele”, explica. “O paciente não sente dor nenhuma.”

Segundo Nunes, existe uma preocupação da classe para que apenas profissionais habilitados possam realizar os procedimentos. “Tem quem vê um procedimento na internet e acha que está capacitado, mas o que nós preconizamos é que o dentista faça um curso.”

No meio da briga entre as duas classes, Guidi explica que quem sai perdendo é o consumidor, que fica sem saber em qual profissional realmente realmente confiar. “Uma situação dessas deixa o consumidor vulnerável”, afirma. Mesmo assim, Jandins Roberto, o galã, confia mais em sua dentista do que em um médico. “Acho cirurgia plástica muito arriscado”, diz.

Guidi aponta que a área da saúde necessita de atuações cada vez mais multidisciplinares. “O que eu acho mais adequado é que a gente olhe para a ciência: é possível que esses dois profissionais possam realizar esses procedimentos?”, questiona.

Para ele, quando a lei tenta ocupar o lugar da ciência, o resultado é desastroso. “O ideal é que a gente tivesse uma lei em que a ciência pudesse prevalecer.”

Guerra nos consultórios

Entenda a briga entre médicos e dentistas sobre a prática de procedimentos estéticos

O que diz a lei do ato médico

A Lei 12.842/2013 determina que a indicação da execução e a própria execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias são de competência médica

O que diz a resolução do CFO

A resolução 176/2016 do Conselho Federal de Odontologia autoriza utilização da toxina botulínica e dos preenchedores faciais pelo cirurgião-dentista, para fins terapêuticos funcionais e/ou estéticos, desde que não extrapole sua área anatômica de atuação

O que os dentistas argumentam

Os profissionais passam cerca de cinco anos estudando a anatomia da face, portanto, têm conhecimento para fazer aplicação da toxina botulínica e preenchedores faciais. A restrição poderia estar relacionada a uma reserva de mercado, não necessariamente a uma questão técnica

O que os médicos argumentam

O mais importante é o bem-estar e a segurança dos pacientes. Apenas os próprios médicos seriam capacitados para realizar os procedimentos e resolver possíveis complicações. Eles afirmam que têm recebido pacientes com problemas relacionados a operações estéticas

 

Folha de São Paulo

 

 




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